14 de junho, terça-feira;
O sol brilhava alto no céu quando eu cheguei ao meu destino. Estava suada, um pouco cansada da caminhada, e as malas, outrora tão fáceis de carregar, pareciam mais pesadas conforme eu me embrenhava pela trilha velha. Eu podia ver o sol, que invadia o interior da floresta através das interseções nuas entre os galhos, e senti-lo sobre meu chapéu. O som do coral estridente de alguns pássaros silvestres me acompanhava desde a base inferior da montanha e eu estava inebriada com o cheiro de terra que pairava no ar.
Quando finalmente avistei as primeiras casas, senti-me aliviada por não ter errado o caminho. As antigas construções de madeira, esculpidas dentro do estilo tradicional japonês e compostas de telhados triangulares e cobertos de palha, estavam dispostas assimetricamente e se estendiam ao longo da estrada de terra que seguia em direção ao cume da montanha. Havia uma grande área no centro com uma pequena horta e uma árvore verdejante.
Mesmo com a luz forte ofuscando meus olhos, e obrigando-me a cobri-los com uma das mãos, eu conseguia enxergar as placas penduradas na fachada das primeiras residências. Alguns kanji estavam ligeiramente apagados — reforçando o aspecto envelhecido da vila — e o material usado nas placas estava desgastado.
Enquanto eu seguia para dentro daquele lugarejo singular, castigada pelo forte sol de verão a cada passo que eu dava, eu também olhava ao redor e tentava me localizar. Poucos segundos depois avistei uma silhueta humanoide à contraluz vir caminhando em minha direção. Quando a figura se aproximou o suficiente para que eu percebesse que se tratava de uma senhora idosa, vestindo um kosode salmão que combinava perfeitamente com seu hakama cinzento, ela meneou a cabeça e me ofereceu um sorriso simpático.
— Você deve ser a Makoto-chan. — Ela ergueu os olhos e fitou o meu chapéu por um instante. — É muito fácil reconhecer pessoas de fora.
Diferente dela, que parecia ter saído de uma pintura tradicional, eu estava vestida ao estilo ocidental em minha camisa de algodão branca e calças amarronzadas.
— Yamada-san? — eu perguntei.
Ela balançou a cabeça positivamente.
— Você é bem mais jovem do que eu esperava. — Sua voz era esganiçada, mas bondosa. — É bom ver que pessoas jovens ainda se interessam por profissões tão bonitas como a medicina.
Eu não soube o que responder, e ela, percebendo isso, tratou de mudar o rumo da conversa.
— Eu poderia ficar aqui enchendo-a de perguntas, sobre a viagem e a paisagem no caminho, como manda a etiqueta... — murmurou. — Mas acho melhor leva-la até a sua casa antes que eu e você torremos debaixo desse sol.
Eu fiquei surpresa, a princípio, pois sempre tinha ouvido falar que os aldeões das vilas mais afastadas, e, portanto, menos ligadas aos avanços da sociedade moderna, costumavam ser enfadonhamente saudosistas e tradicionais. Aquela mulher tinha um ar divertido, jovial, e isso era claro especialmente no modo como ela se expressava.
Eu a segui em direção ao interior e viramos na primeira esquina, prosseguindo por mais alguns metros, passando ao lado de várias casas — extremamente similares — até alcançar a última. Ela parecia mais velha que as outras e era possível notar vários pedaços da construção se desprendendo.
— É aqui. — disse a senhora. — É claro que ela precisa de alguns ajustes, e há muita bagunça do lado de dentro que você precisará limpar, mas ainda está firme. É uma das maiores daqui.
— Eu estou muito satisfeita com ela. — respondi enquanto colocava as malas no chão. — A quem você disse que ela pertencia, mesmo?
— Ao Inoue-san. Ele morreu há pouco mais de um mês. Dizem que foi picada de algum inseto venenoso ou algo parecido. Eu não sei bem.
Respondi com um leve arquear de sobrancelha e ela deu o assunto por encerrado. Disse que voltaria mais tarde para ver se eu precisava de alguma coisa, frisando que esperava que eu aproveitasse a estadia, e despediu-se de mim com um alegre aceno.
Eu tirei os sapatos, deixando-os no genkan, e apanhei as minhas malas. Deslizei a porta de correr com o cotovelo e entrei na casa que me abrigaria pelos próximos meses.
As minhas narinas foram assaltadas de súbito por um forte cheio de mofo e uma rajada consistente de poeira quando me deparei com o primeiro compartimento. Era uma washitsu; com uma mesa baixa no centro, cercada por zabuton púrpura, e uma alcova para itens decorativos na parede à direita da entrada. Parecia ter sido preparada com a intenção de ser uma sala de estar.
Deixei as malas no chão com cuidado e suspirei ao me dar conta do trabalho que teria para organizar tudo. Decidida a começar a limpeza antes que eu desistisse da ideia, prendi meu cabelo negro e comprido em um coque e pus a mão na massa.
Quando cheguei a conclusão de que o ambiente já era habitável, o sol já estava quase se pondo. Embora estivesse suada e malcheirosa por causa do esforço excessivo, eu podia sentir que o clima ao meu redor já não era mais tão tórrido. Uma brisa fresca soprava por entre asfusuma e refrescava o meu corpo, de modo que eu fiquei feliz em deixar o trabalho pesado por alguns instantes para apreciar a mistura de laranja e rosa que tingia o céu do crepúsculo.
Eu estava tão distraída que demorei um pouco para perceber que estava sendo observada. Era a senhora Yamada, com o mesmo sorriso agradável de outrora, e uma garotinha, ambas paradas na entrada da casa, a poucos metros de mim. A menor, que tinha cabelos castanhos na altura do pescoço, estava usando um yukata amarelo com garças brancas desenhadas na barra.
— Como está indo? — indagou Yamada-san.
— Ainda tem alguns ajustes que eu preciso fazer. — respondi. — Mas acho que eu já posso dormir aqui sem problema.
— Fico feliz.
A garotinha, que até aquele momento se comportara com timidez, e parecia estar ocultando alguma coisa nas costas, aproximou-se de mim junto da senhora idosa. Parecendo um pouco desconcertada, e com as bochechas avermelhadas, ela me estendeu um furoshiki azul com detalhes em preto.
Eu fiquei um pouco surpresa e me curvei para falar com ela.
— Obrigada, mocinha. Qual é o seu nome?
— Suzu. — Ela disse, com sua voz infantil e aguda.
— “Sino”? — perguntei, referindo-me ao kanji do nome dela.
— Sim. O meu pai escolheu esse nome porque a minha mãe gostava muito de ouvir o som dos sinos tocando no templo. — explicou-me.
— Ela é a filha do chefe do vilarejo. — disse Yamada-san. — Eu mencionei a ele que a receberíamos por um tempo e Suzu fez questão de vir aqui te receber.
Eu olhei para a garotinha novamente e ela sorriu inocentemente para mim.
Eu as convidei para entrar, pedindo desculpas pela bagunça remanescente, e indaguei se aceitavam chá. Com a resposta positiva, fui até a cozinha — que ainda não estava montada apropriadamente — e separei algumas ervas. Usei uma jizaikagi antiga, que achei entre os pertences do antigo morador, para esquentar a água e deixei meu chapéu sobre o tatame logo ao lado. Não muito tempo depois juntei-me a elas e nós sentamos na beira do genkan; Yamada-san e eu nas laterais com Suzu entre nós.
Eu relaxei pela primeira vez naquele dia.
Desembrulhei o envoltório de pano que recebi de Suzu e me deparei com uma pequena caixa de bentō. Ela era simples, e lisa, e haviam alguns pequenos símbolos encrustados na madeira delicada. Dentro dela havia uma porção de dangō em várias cores, que iam do rosa ao amarelo, alinhados perfeitamente. Pareciam ser pouco mais de dez. Dividimos entre nós e começamos a comer.
— Você sabe porque a montanha se chama Shiroyama? — a idosa questionou-me de repente.
Parecia-me um nome simplório atribuído sem qualquer razão específica. Em nenhum momento eu me perguntei se havia uma explicação concreta por trás da escolha dele.
Ela ergueu a cabeça, revestida de fios brancos, para o céu, e seus olhos captaram os últimos instantes do sol sobre a terra naquele dia.
— Em certa época do ano, na noite mais quente, dizem que uma infinidade de luzes brancas, mais do que é possível contar, emergem da montanha e se espalham pelas áreas próximas. Um som ensurdecedor ecoa por todo canto, mas não dá para saber de onde ele vem. E no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, tudo volta ao normal.
Eu permaneci em silêncio, tentando ilustrar aquele acontecimento em minha mente, enquanto Suzu voltou-se para mim e disse:
— São os yōkais; eles passeiam pela rua e gritam muito alto.
— Yōkais? — Perguntei de novo.
— Sim. — Sua expressão tornou-se serena. — Papai não gosta que eu fale sobre isso, mas eu acho que os vi uma vez caminhando pela rua principal. Eram... yōkais.
Eu direcionei os meus olhos para a senhora Yamada, esperando por uma repreensão maquinal, ou uma discordância evidente, mas ela apenas sorriu para mim.
— E como esse yōkais eram? — Dei continuidade à conversa.
— Alguns são muito feios. — Suzu continuou, erguendo os braços para gesticular, aparentemente tentando me explicar com mais clareza. — Tinha um boi branco enorme, com vários olhos pelo corpo, e uma mulher muito bonita, vestida de branco, com cabelos pretos. Ah, e tinha um gato também.
Enquanto a menina falava, eu permiti que meus olhos vagueassem pela paisagem penumbrosa do vilarejo e tentei fazê-la parecer confortável em minha mente. Era ali que eu permaneceria nos próximos meses até que eu conseguisse coletar todas as ervas medicinais raras nativas daquela região. Seria de grande ajuda para mim e meu estudo, para desenvolver remédios mais poderosos, mais efetivos, que trariam conforto e cura aos doentes.
E foi como em um piscar de olhos que o tempo passou. Quando me dei por mim, já era tarde e as duas se despediram e foram embora.
O véu da noite cobriu o lugar.
Sentindo o peso do cansaço sobre os ombros, decidi guardar o que eu havia utilizado durante a tarde e me recolher. Arrastei-me em direção à cozinha, juntei no canto do irori as cinzas do fogo que utilizei para aquecer a chaleira e guardei no armário o restante das ervas verdes. Pensava comigo que no dia seguinte eu finalizaria o que ainda estava pendente.
Foi quando lembrei do meu chapéu.
Corri os olhos pela cozinha em busca do objeto, mas não o encontrei. Eu tinha certeza de tê-lo deixado ao lado do irori quando o acendi, mas eu não conseguia vê-lo.
A certeza de que algo estranho tinha acontecido caiu sobre mim.
E eu nunca encontrei aquele chapéu.
Glossário:
Hakama :: Peça de roupa equivalente à calça;
Genkan :: Área externa da casa onde se deixam os calçados antes de entrar;
Washitsu :: Cômodo construído/decorado no estilo japonês;
Zabuton :: Almofadas onde as pessoas sentam ao redor da mesa baixa;
Fusuma :: Portas de correr;
Tatame :: Esteira de palha de arroz entrançada que serve de tapete nas casas japonesas;
Yukata :: Quimono de algodão ou linho usados no verão ou em festivais típicos;
Furoshiki :: Embrulho de pano;Jizaikagi: chaleira ajustável (normalmente presa ao teto);
Bento :: Tipo de marmita japonesa;
Dango :: Bolinho japonês feito de mochiko (farinha de arroz);
Irori :: Fosso revestido, em forma de quadrado, no chão onde as pessoas normalmente colocavam lenha para cozinhar;
Yokai :: Como comumente se chama as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
[Bônus: Shiroyama, no texto, vem da aglutinação das palavras "shiro" (branco) e "yama" (montanha);]
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